Arte minha: "O caco de lua que a janela emoldura" |
"Pode-se viver longe, muito longe, lá onde não chega estrada alguma nem há trilhos de trem por perto: num velho aposento perdido na chapada; lá onde não existem nem veredas fortuitas nem inimigo que salte, nesse duro espaço que amolda vontades e cede ao abandono deixando atrás de si os ares mundanos, a esfumaçante sociedade que nunca pára, as tentações imediatas. Em troca... optar e para sempre pelo retiro, pela experiência viva que afina os sentidos e alarga toda a forma. Acaso seria necessário? Não, mas uma vez, sim, - aproximadamente - se pode viver sozinho. Longe, onde o tempo não apressa as sábias lentidões."
"Se puede vivir lejos,
muy lejos, allá donde no llega ninguna carretera ni hay vías de tren cercanas:
en un viejo aposento perdido en la llanura; allá donde no existen ni veredas
fortuitas ni enemigo que salte, en ese duro espacio que amolda voluntades y
cede al abandono dejando tras de sí los aires mundaneros, la humeante sociedad
que nunca para, las tentaciones prontas. A cambio… Optar y para siempre por el
retiramiento, por la experiencia viva que afina los sentidos y alarga cuanta
forma. ¿Acaso es necesario? No, pero alguna vez sí -aproximadamente- se puede
vivir solo. Lejos, donde el tiempo no premia las sabias lentitudes."
You can live far away, very far away, out there where neither roads nor train tracks reach: in an old shack lost on the plain; out there where no fortuitous sidewalks exist nor enemies lurk, in that hardened space that molds the will and leads to resignation, leaving in its wake worldly airs,
ceaseless and smoldering society, immediate temptations. In exchange for ... To opt for, and forever more, withdrawal, first-hand experience that sharpens the senses and extends what it creates. Is it necessary? No, but at some point, yes-more or less-one can live alone. Far away, where time doesn't reward the wisdom of the slow.
Traduzir aqui se trata apenas do prazer [útil haja visto a minha profissão] da leitura mais minuciosa que há. E o prazer e a utilidade da tradução aparecem com mais clareza justo naqueles momentos em que trombamos com alguma coisa que exige algo mais que alguma solução imediata e simples entre os dois idiomas.
Daniel Sada é o escritor mais profundamente Roseano que eu conheço e essa sua profundidade rara é em certa medida produto do fato de ele estar escrevendo em uma outra língua: Sada "traduziu" para o espanhol do norte mexicano, a serviço do seu próprio estilo único, aquela sintaxe solta e aquela dicção que brinca de fingir a língua vernacular "do mato" em formas mais antigas que marcam Guimarães Rosa. Por exemplo, no uso curioso do verbo "premiar" em espanhol no seu sentido menos comum de "apressar" [esse segundo premiar espanhol do latim premere que é também "apertar/espremer" e nos deu no português o adjetivo premente]. Ou na interpolação de um "aproximadamente" devidamente acentuado por travessões no meio de uma frase que já vacilava em admitir a possibilidade da vida realmente solitária.
Enfim: traduzir Sada me força a conhecer o texto de Sada e de Guimarães Rosa mais intimamente e a viver pelo menos por alguns momentos nesse "longe, muito longe" do conto, onde a "experiência viva [...] afina os sentidos e alarga toda a forma".
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