Skip to main content

Viva la mídia loca: sobre o caso Heidegger [de novo]

O anti-semitismo de Heidegger e o seu comportamento durante os anos de nazismo no poder já tinham sido objeto de debates e controvérsias antes, mas parece que a publicação dos tais "Cadernos Negros" na Alemanha vão trazer uma nova força a uma discussão que parecia, para muitas pessoas, ter-se esgotado  [aqui uma nota sobre o assunto]. O filósofo Gunther Figal, diretor do departamento de filosofia da universidade de Freiburg e diretor da "Sociedade Martin Heidegger" desde 2003 acaba de pedir demissão do cargo com termos bastante contundentes:
“As chairman of a society, which is named after a person, one is in certain way a representative of that person. After reading the Schwarze Hefte, especially the antisemitic passages, I do not wish to be such a representative any longer. These statements have not only shocked me, but have turned me around to such an extent that it has become difficult to be a co-representative of this.”

Meu convívio próximo na universidade com figuras intelectuais as mais variadas me fez reagir sempre com um certo ar cansado às "denúncias chocadas" sobre comportamentos e manifestações mais ou menos privadas bem desprezíveis de machismo, racismo e classismo de figuras que escreveram, às vezes brilhantemente, às vezes nem tanto. Estou de acordo com um professor com o qual praticamente nunca estou de acordo quando ele declarou que, se alguém tem alguma ilusão sobre os efeitos benéficos da literatura ao caráter e espírito humano, basta conhecer os departamentos de literatura na universidade para saber que o buraco é mais embaixo. Não sei se os meios profissionais que conheço são piores que a média de outros meios profissionais que obrigam as pessoas a conviver num mesmo espaço comum, mas espero sinceramente, para o bem dos que trabalham em outros campos, que os que conheço não sejam melhores.

Justiça seja feita: tenho encontrado gente por aí com comportamentos pulhas, canalhas, covardes, arrogantes, vaidosos, ridículos, pedantes, safados, mentirosos, pusilânimes, brutos, mas também tenho encontrado gente honesta, leal, modesta, afável no trato, sincera. Suponho que seja assim em outros meios, desde a máfia até o convento, passando pelo sindicado, partido político, clube, condomínio, diretoria de escola de samba e torcida organizada.

Por um lado penso que qualquer pessoa que alega oferecer uma total transparência/coerência no seu discurso e conduta públicos, principalmente quando estes discurso/conduta são muito "coerentes e admiráveis", é um moralista hipócrita que finge não ter uma existência privada, digamos, humana e, portanto, cheia de falhas. Por outro lado, acho patética a tentativa de justificar safadeza, perversidade, desonestidade, discriminação e covardia em uma retórica sofisticada qualquer. E tudo fica mais ridículo e patético quanto mais sofisticada a retórica empregada ou mais canalha o comportamento privado desculpado por ela.

Comments

Anonymous said…
Vc achou ridículo o posicionamento do cara? Ou achou ridícula a declaração? Ou ainda, achou tudo, mas tudo mesmo, ridículo igual? Sério, não entendi.
(Tata)
Tatá, por partes:
Não achei ridículo o posicionamento dele. Posso imaginar a dor e decepção de um sujeito que se dispôs a levantar Heidegger feito um estandarte e agora resolve queimar publicamente o estandarte que carregou por tanto tempo.
Acho que há uma diferença entre discursos públicos que de alguma maneira ou outra apontam para o que é certo e bom para as pessoas e, por exemplo, o trabalho de um músico. Se o Chico Buarque é um cachorro em casa, por exemplo, paciência. Como ele nunca se fez de cidadão-modelo, ele é, digamos, um canalha em primeiro grau. Tenho muito claro na cabeça que artistas e intelectuais não são seres humanos nem um centímetro melhores que, por exemplo, mecânicos e garçons. Agora se um sujeito vive por aí posando de paladino dos frascos e comprimidos e se revela um cachorro em casa, as suas credenciais de paladino vão por água abaixo. Não sei se me expliquei melhor.
E onde se lê "Tatá" entenda-se "Tata" :)
Anonymous said…
So digo uma coisa. Essa questão do Heidegger analisado sob um viés político e anti-semita já foi muito discutido outrora, principalmente por Lacoue-Labarthe...Gunter está cansado de saber disso mas não resistiu a um holofote e se eternizar como o 'cara' super honesto e de conduta ilibada...Quanta idiotice e hipocrisia. (Carol)

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...