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Amnésia histórica e pobreza cultural

Sobre a importância de tradição e história na cultura, Raymond Williams dizia que uma sociedade que só pode viver com base em seus recursos contemporâneos é uma sociedade pobre de fato. Terry Eagleton acha que as sociedades do capitalismo tardio reprimem a história porque elas devem reprimir formas alternativas de história e porque gostariam produzir a história de mais do mesmo em qualquer que seja a aparência mais na moda no momento. Não sei se concordo com Eagleton – acho a explicação talvez simples demais. Mas fico com a constatação de Williams sobre a pobreza cultural de quem vive eternamente num estranho hoje dono de, no máximo, um passado nebuloso e rarefeito.

Assim vive o Brasil, cuja a opinião pública “discute” o país fingindo que a história desse país não existe. Alguns exemplos:

1. A maioria da opinião pública “discute” política exclusivamente em termos personalistas e profundamente moralistas, fazendo crer que a solução de todos os nossos males políticos é a simples substituição de pessoas “incompetentes” e “desonestas” [“más”] por pessoas “competentes” e “honestas” [“boas”].

2. A maioria da opinião pública “discute”, entre outros temas econômicos, inflação e nível de individamento como se não tivéssemos vivido décadas e décadas e décadas de endividamento externo e de um processo inflacionário hediondo que ajudou a nos transformar em um dos países mais injustos do planeta. E regula a importância relativa da conjuntura às suas simpatias políticas: meu inimigo só erra, quando acerta é porque a conjuntura favorece.

3. A maioria da opinião pública “discute” projetos faraônicos de desenvolvimento sem atentar para a tragédia que é repetir, pela enésima vez, o binômio apropriação de riquezas indígenas e destruição natural e cultural.

4. A maioria da opinião pública “discute” carga tributária insistindo na tecla de precarizar serviços sociais ainda mais [cortando custos] sem falar na desproporção absurda entre impostos relacionados com o consume e impostos relacionados a renda e propriedade.

5. A maioria da opinião pública “discute” o combate à violência sem sequer tocar na questão da brutalidade genocida de forças policiais militarizadas e do encarceramento em massa em prisões sub-humanas.

Essa maioria da opinião pública não é composta apenas de gente que mereça os adjetivos “imbecil” e “fascista”, duas “gentilezas” com que os intolerantes premiam aqueles que discordam deles em qualquer coisa. São muitas pessoas mais ou menos conservadoras, mas há um número considerável de outras posições entre os amnésicos. A grande ironia é que as soluções, os possíveis caminhos que eles apontam são quase sempre pastiches reconhecíveis de algum evento passado na história brasileira, alguns bastantes infelizes: reverter resultados eleitorais com manobras de bastidores, parlamentarismos de ocasião, planos de desenvolvimento que parecem saídos do governo Geisel, apelos ao Brasil gentil que resolve as coisas na conversa, mãe dos pobres, república parlamentar, golpe militar em nome de uma suposta liberdade ameaçada, plano real, constituinte, renúncia, impeachment. A pobreza da imaginação brasileira me assusta.


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