1. Um roteiro posta bem no centro da história um casal
próximo da aposentadoria. Durante as quatro estações do ano o casal é visto
cuidando da sua horta num "alotment" [um pequeno pedaço de terra num
lote comunitário] perto da casa e depois em casa recebendo amigos e parentes.
Mas a verdadeira protagonista do filme, aquela personagem que faz as coisas
andarem é uma amiga do trabalho da esposa do casal. Mary, interpretada pela
sensacional Lesley Manville é
uma mulher de meia idade muito sozinha que gravita em torno do casal Tom e
Gerri. Mary está na periferia da vida de Tom e Gerri, o filme está firmemente
assentado no mundo desses dois, mas, ainda assim, Mary é a razão de ser do
filme.
Ou seja, Mike
Leigh, mais uma vez, fez um filme com um roteiro bastante ousado, mas
que, mais uma vez, não grita e anuncia essa ousadia como se ela fosse a razão
de ser do filme.
2. Ousadia
formal que não se transforma em formalismo. Mike Leigh combina um cuidado
extremo com a forma com uma certa dureza realista. A câmera/fotografia/luz
são extremamente cuidadas, a música sutil intervém sempre a serviço da história
sem afogar a tensão emocional da história. As atuações maravilhosas são
uma combinação de improviso meticuloso e organicidade profunda.
3. A personagem
Mary de Lesley
Manville é uma dessas pessoas que fala sem parar, mas os olhos e o rosto da
atriz falam ainda muito mais. Assim, o tempo todo, assistimos o melancólico
espetáculo de alguém que olha constantemente para o seu passado cheia de
saudades e arrependimentos para não encarar um futuro, que já se descortina e
que é para ela desesperador: envelhecimento e solidão para uma mulher presa em
sonhos de juventude e romance cada vez mais impossíveis. Em Mary você vê a
mulher que ela é, a jovem que ela foi e à qual ela se agarra desesperadamente e
a velha que ela morre de medo de se transformar mas na qual ela já está se
transformando. Diz o próprio Leigh:
"Mary is a
victim of many things, but mostly the received propaganda that a woman has to
be sexy, a woman has to be gorgeous, and it stitched her up for life. She is
not liberated, everything that has happened to her is a function of that
misguided, received notion."
Uma atriz capaz
de fazer tudo isso num cinema que costuma costuma reservar às mulheres o papel
de decoração dos ambientes é um fenômeno para se festejar.
3. O filme
também fala com bastante agudeza de algo que a medicina contemporânea insiste
em negar: o alcoolismo assim como a depressão, não se explicam simploriamente
como frutos de "uma condição genética" e não se
"resolvem" com uma pílula qualquer. Alcoolismo e depressão são
condições privilegiadas para se falar da dor e do sofrimento humano, nessa
interação complexa entre os limites de cada indivíduo e um mundo hostil que
castiga sistematicamente a humanidade e premia a estupidez. Logo no começo do
filme a também fantástica Imelda Staunton faz uma relutante cliente de terapia que é um retrato de
de arrepiar.
4. Os amigos do
casal chamados Mary e Ken e o irmão de Tom chamado Ronnie são retratos dessa
tristeza solitária. O filme mostra personagens que são todos, sempre, vítimas e
culpados ao mesmo tempo, mas isso não nos incita à indiferença com relação ao
sofrimento humano.
Comments