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Prosa minha: Sobre dinossauros e lagartixas


Sobre dinossauros e lagartixas

São várias as pitorescas curiosidades da minha cidadezinha, mas quero chamar a atenção para uma que, crescendo à sombra de outra muito mais impressionante, pode passar desapercebida, mesmo aos locais. 488 anos de escravidão deixaram aqui inúmeras marcas. São cicatrizes muito feias, que preenchem de modo sufocante o nosso no dia a dia e que podem nos fazer perder de vista outras marcas. Eu me refiro às marcas causadas pelos 489 anos de monarquia que acompanharam a escravidão em quase todo o seu percurso por aqui. Meu pequeno pedaço de chão está coalhado de cartórios hereditários que não me deixam negar. Mesmo nossas ainda tão jovens universidades estão coalhadas de herdeiros, filhos, sobrinhos e netos dos grandes dinossauros de gabinete que as habitavam soberanos nas priscas eras em que elas foram constituídas, há menos de cem anos. Meus amigos nostálgicos me acusam de republicano radical e insistem em me dizer que esses herdeiros acadêmicos – este termo aqui se aplica lindamente – são todos hoje em dia devidamente concursados. Acrescentaria que alguns deles são até donos de um certo brilho próprio. Ora, um breve passeio pelos anais da história seria o suficiente para constatar que o filho de um monarca brilhante pode ser um imbecil inoperante. Mas a crença na força do sangue que se perpetua de geração em geração é uma superstição ainda muito poderosa aqui em Moctezuma. Sapateiros, médicos, lojistas, advogados, engenheiros, pilotos de avião: todos sonham em encaminhar seus filhos em seu ramo profissional, escondendo sua vaidade num delicado véu de benevolência. E não se deixe enganar pelo aspecto até meigo com que esses filhos, sobrinhos e netos desfilam suas fraquezas singelas ao lado dos seus vistosos sobrenomes. Não ouse deixar sem resposta por mais de quatro dias o chamado real de um deles, mesmo que ele chegue na prosaica forma de um e-mail. A estatura diminuta desses herdeiros dos dinossauros lembra nossas simpáticas lagartixas, mas a sua pele é fina e delicada como a de uma dessas comedoras de mosquitos e baratas que adornam as paredes de todas as nossas casas. E esses minúsculos e frágeis filhotes de glórias passadas podem comportar-se ferozmente ao pressentir que não se tem para com eles o mesmo temor reverencial que se prestava aos seus gigantescos e cascudos pais. Recomenda-se, pois, ao visitar nossa cidade o uso de botas de cano bem alto.    

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