Arte minha: "To Rent What You Owned" |
"Eu ia andando pela
Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem
pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava
era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via
tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as
coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser
liberdade.
Tive então um
sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de
Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência
ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho
a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o
que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem
nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum
compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho.
O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas
porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor
solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho
maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o
alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre."
[...]
"... mas quem sabe,
foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para
o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um
cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não
sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu,
só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor
solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a
transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo
é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei
ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É
porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.
É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com
brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me
foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque
só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca
poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use
o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o
formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha
simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me
sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um
grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato
sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha
que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só
porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa
olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida.
Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco
de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de
minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu
sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu,
que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e
ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim,
estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só
consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu,
eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que
eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado
marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus,
Ele não existe."
Começo e final da crônica/conto "Perdoando Deus" de Clarice Lispector que você encontra na íntegra aqui.
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(Tata)
Tata.