[Ilustração: still do filme Alma do osso de Cao Guimarães]
Pai e mãe é muito bom
Barriga cheia é mió:
Quem tem barriga cheia
Tem pai, tem mãe, tem vó.
Canção do Rio São Francisco
Quando eu era criança
toda a criança queria
crescer e não ser criança
pra poder nadar no rio
o dia inteiro, em paz.
Quando eu era criança,
na outra margem do rio
os moleques se gabavam
do preço que eu não tinha
quando eu era criança.
Quando eu era criança,
n’água morna da beirinha,
puxando ronco, brincando,
caçando piabas e girinos,
moles, soltos toda-a-vida.
Quando eu era criança,
coisas velhas, esquecidas,
teimam em não se apagar:
O homem da rua saiu
quando eu era criança.
Valham-me as nove almas,
saiu o Não-sei-que-diga!
Três morreram enforcadas!
Eh-vem o cão-coxo, mofino!
Outras três foram queimadas!
Quando eu era criança
saiu de mim meu moinho.
Três morreram afogadas!
Nove almas na farinha
do pão que ele amassa.
Quando eu era criança
tropeiro na troca firme,
dura baldroca cigana:
boçal, crioulo e ladino,
lado a lado na mercança.
Quando eu era criança,
carne sua, carne minha
carne dura, carne fraca,
carne pai e carne filha,
carne mole, carne brava.
Quando eu era criança
eu também sou da família
também tenho carne lá.
Quem amansa o sinhozinho
é cipó timbó amassado.
Quando eu era criança
o que esquenta fica frio
na barra da saia-branca.
Cabaça-preta desanima,
tingui-capeta quebranta.
Quando eu era crianca,
o que dele mata o brio
é reza-brava Africana;
chá d’alface faz dormir
sonho de sono pesado.
Quando eu era criança,
do outro lado do rio
também queriam crescer
e pelejar todo dia
no eito bravo no sol.
Quando eu era criança,
porque lá não se comia
amontoado no cocho,
porque lá não se comia
feito porco na ceva.
Todo mundo quer ser gente.
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