[ilustração: Após mudar seu penteado para tentar fugir do ódio popular depois de ter sido flagrada trocando poemas alheios por dinheiro público, vemos aqui foto de Maria Bethânia para a sua ficha na polícia cultural. Notem, por favor, o olhar altaneiro e desafiante da vilã.]
Nossa visão de nós mesmos é paradoxal. Gostamos de pensar que somos gentis e afáveis mas também sabemos que nos matamos diariamente uns aos outros como se estivéssemos em plena guerra civil. Da mesma forma, gostamos de pensar que somos uma sociedade tolerante mas, de tempos em tempos, escolhemos um bode expiatório para saciar nossa sede de indignação hipócrita e o ódio então parece uma espécie de esporte nacional.
Um exemplo:
A deputada que dança quando um companheiro de partido é absolvido depois de um escândalo vira capa de revista e de jornal e objeto central do aparente ódio nacional à corrupção [e eis aí mais um paradoxo: como é que podemos ser tão corruptos e odiar tanto a corrupção?]. De repente, era como se estivesse ela mesma mais envolvida no tal escândalo que o tal sujeito. Mas, “quem era ele mesmo?”: nossa amnésia seletiva é algo para se estudar também. Como sou adepto do lema “recordar é viver”, aí vai: o deputado em questão era João Magno, ex-prefeito de Ipatinga, acusado de lavar uns 200.000 dólares na agência de publicidade do sócio do vice-governador do mesmo estado, quantia que é uma enormidade para mim mas café pequeno perto de 1,7 bilhão de dólares de apenas UM dos depósitos feitos em UMA das contas de lavagem de dinheiro do banco de Daniel Dantas. Dançando entre quatro paredes estavam e estão muitos empresários [de onde veio o dinheiro?], outros políticos e inclusive jornalistas aprendizes de Carlos Lacerda que continuam as mesmas práticas corruptas e o mesmo jogo de cena de sempre, em que o indignado de hoje é o pragmático de amanhã e vice-versa.
Outro exemplo parecido: Fernandinho Beira-Mar, o maquiavélico gênio do mal responsável por todos os males criminais do nosso país, está preso faz tempo e, que eu saiba, o tráfico de drogas não diminuiu em nada – aliás qualquer redução na oferta implicaria apenas num aumento do preço do produto disponível na praça.
E ainda mais um exemplo: de 4 em 4 anos, depois de uns seis meses de euforia induzida em nome da venda de desodorantes da copa, TVs da copa, guaranás da seleção, cervejas canarinho, carros da copa etc, se não ganhamos a tal Copa do Mundo escolhemos sempre uns dois ou três judas para pagar pelo nosso “terrível desastre”, o “fracasso nacional”, o “vexame” etc.
Não se trata de simpatizar com deputados dançarinos, traficantes talentosos ou jogadores de futebol milionários, nem de concordar com o que eles fazem e fizeram ou deixam e deixaram de fazer, mas apenas constatar que todo esse auê trata-se de uma cortina de fumaça para evitar conversar sobre coisas mais complicadas e desagradáveis que esses arremedos de enredo de novela das oito.
Chego agora ao caso em questão:
Parece que Maria Bethânia fez o que vários outros fizeram e continuam fazendo desde que a lei Rouanet foi criada como um paliativo para a paralisação completa das agências públicas de apoio à cultura, delegando na prática à iniciativa privada a decisão do que merece ou não ser financiado com dinheiro público: montou um projeto e obteve permissão para buscar financiamento privado para o mesmo em troca de renúncia fiscal. Nesse caso, pelo que eu sei, era um projeto para filmar/gravar poemas recitados pela Bethânia e disponibilizá-los gratuitamente online.
Sinceramente não sei de mais detalhes e acho que não faz muita diferença para a observação que eu quero fazer: financiaram-se assim MILHARES de projetos, de excelentes a péssimos, de perdulários a econômicos, de relativamente modestos a megalomaníacos. Para ser mais específico, em 2010 foram apresentados 12.825 projetos [56% deles aprovados ainda que apenas 25% tenham conseguido captar recursos] num montante de R$ 1.270.800.432,14 [fonte]. Em outras palavras no ano passado parece que pouco mais de 3.000 projetos conseguiram dinheiro de fato a partir da decisão de alguém dentro de uma grande empresa que decidiu neles “investir” [as aspas aqui porque afinal de contas o dinheiro é do contribuinte, não deles]. Entre eles o tal projeto da Bethânia.
Esse assunto só costumava chegar aos jornais quando algum cineasta ou ator de teatro com trânsito na imprensa expressa indignação porque seu projeto não foi aprovado. Ou quando os vendedores de indignação pegam alguém para linchar. Imagino uma conversa nacional assim:
“- Ei, vamos aproveitar para conversar sobre a lei Rouanet e discutir o papel do estado na cultura?
- Ora, mas que conversa mais chata! Vamos simplesmente aproveitar que Maria Bethânia é a encarnação mensal da Odete Roitman no jornal e nos sentir indignados todos juntos mais uma vez!”
Em outras palavras, um pouco cansado desse estar cansado [como era mesmo o nome daquele movimento cívico de indignação?], observo com tristeza que escolheram logo a Bethânia para fazer a dança da pizza nesse começo de ano e prefiro escutar de novo o belo CD que ela gravou com Omara Portuondo que descobri graças ao Limas da Pérsia:
Comments
até onde eu saiba, bethania sempre foi meio ferrada em comparação a outros artistas da mesma geração.
e muito mais talentosa.
comparando os valores de incentivo a cultura c/ outros incentivos industriais (até o papel de jornal subsidiado), no fundo é pouco, não é?