Lima Barreto era afilhado de Afonso Celso, o Visconde de Ouro Preto, membro da Academia Brasileira de Letras, autor do inacreditável Porque me ufano do meu país - My Country Right or Wrong. Sua mãe deu-lhe o primeiro nome do padrinho inventor do ufanismo, que em troca ajudou o rapaz de família humilde a entrar no Liceu Popular Niteroiense, que de popular não tinha nada, era um colégio particular de elite. No seu diário o ainda jovem Lima Barreto já mostrava claramente que se recusaria a fazer o papel de afilhado agradecido, tão caro ao patriarcado brasileiro:
Lima Barreto logo rompe com o padrinho, mas consegue arrancar do patriotismo patrioteiro do padrinho "idiota" o cerne de um de seus melhores e mais conhecidos personagens: Policarpo Quaresma, o quixotesco patriota gentil. Em Policarpo enm sombra do católico elitista, nem do monarquista conservador, nem do escritor pedante e medíocre. Apenas o patriotismo exacerbado, que chega a levar Policarpo a um hospício que o afilhado de Afonso Celso conheceu de perto.
Na parte final do livro a guerra e os absurdos da violência repressiva de Floriano Peixoto fazem desmoronar as quixotadas sinceras de Policarpo na sua própria cabeça e ele, esperando sua provável execução como traidor, finalmente descobre na ideia de pátria uma quimera:
"Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se
deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma
asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso."
A prisão e a eminência do fuzilamento de Policarpo Quaresma, e principalmente a covardia de todos que poderiam ajudar mas se recusam a fazê-lo, faz com que caia por terra também a alienação de Ricardo Coração dos Outros, personagem cujo cerne orgulhoso e promotor do então desprezado violão Lima Barreto arrancou de um vaidoso Catulo da Paixão Cearense.
"Ricardo veio andando triste e desalentado. O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor. Ele que sempre decantara nas suas modinhas a dedicação, o amor, as simpatias, via agora que tais sentimentos não existiam. Tinha marchado atrás de cousas fora da realidade, de quimeras. Olhou o céu alto. Estava tranqüilo e calmo. Olhou as árvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam atingir o céu. Olhou as casas, as igrejas, os palácios e lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquilo custara. E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo: com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos."
Finalmente a afilhada do Afonso Celso transformado em Quixote tem o seu momento de desalienação, mandando às favas o marido pedante e egoísta com que havia se casado apenas para agradar ao pai e tentando, com risco à própria vida, interceder pela vida do padrinho. Olga sai da tentativa lograda de encontro com Floriano Peixoto despindo-se de suas ilusões mas já também caçando alguma esperança:
"Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue
de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por
uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido grande e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros."
E assim termina O triste fim de Policarpo Quaresma, esperando mais, serenamente, da vida.
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