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Sobre tradução: Ortega y Gasset

Ando às voltas com conversas interessantíssimas sobre o exercício da tradução, interessantes especialmente porque são conversas entre tradutores e dispensam certas afirmações extra-mal-humoradas que só fazem mesmo aqueles que nunca tiveram que sentar e meter a mão na massa, num serviço para o qual qualquer sacralização besta do texto literário revela toda a sua bestage. Agradeço a Denise Bottman, que aliás tem uma série de blogues muito interessantes, entre eles o indispensável "não gosto de plágio", que frequentemente desnuda a cara-de-pau que grassa em certos meios editoriais...

Bom, mas e aí trombo com esta interessante reflexão de Ortega y Gasset sobre a tradução, feita a partir do ponto de vista de um autor traduzido:

Para você que achava que Ortega y Gasset
era uma dupla sertaneja espanhola,
eis o homem, rindo da sua cara.
«Es cosa clara que el público de un país no agradece una traducción hecha en el estilo de su propia lengua. Para esto tiene de sobra con la producción de los autores indígenas. Lo que agradece es lo inverso: que llevando al extremo de lo inteligible las posibilidades de su lengua transparezcan en ella los modos de hablar propios al autor traducido. Las versiones al alemán de mis libros son un buen ejemplo de esto. En pocos años se han hecho más de quince ediciones. El caso sería inconcebible si no se atribuye en sus cuatro quintas partes al acierto de la traducción. Y es que mi traductora ha forzado hasta el límite la tolerancia gramatical del lenguaje alemán para transcribir precisamente lo que no es alemán en mi modo de decir. De esta manera el lector se encuentra sin esfuerzo haciendo gestos mentales que son los españoles. Descansa así un poco de sí mismo y le divierte encontrarse un rato siendo otro.»
Miseria y esplendor de la traducción (1937) que você pode encontrar aqui.

A afirmação inicial de Ortega y Gasset é interessante mas me intriga, porque acho que o mercado editorial força a barra justamente no sentido contrário, tentando, digamos assim, naturalizar para o novo idioma a prosa do autor, mesmo que esse autor tenha um "modo de decir" bastante peculiar em sua própria língua materna. De qualquer maneira, quando se passa ao que ele chama de "gestos mentales" de uma determinada língua, a coisa fica mais interessante. Porque quando uma língua se desdobra para dizer alguma coisa que é dita em outra língua ela fica mais elástica, mais ágil e mesmo mais rica. Incorporar termos como "deletar" ao português, por exemplo, nos deu um verbo específico para apagar coisas no computador. É uma coisinha boba, mas é um "upgrade"...   
Ah, e é claro que também me chama atenção o bom senso dele em atribuir a boa recepção da sua obra na Alemanha ao "acerto" das traduções para o alemão. O diabo é definir o que é esse acerto. No caso a atribuição me parece um raciocínio circular: "fez sucesso porque traduziu bem; traduziu bem porque fez sucesso". Nem sempre o tal "acerto" pode ser corroborado com o tal sucesso na recepção, que depende de muitas outras coisas, também muito além das torres de marfim templos da tal literatura sublime.

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