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Porque discordo dos que dizem que o conhecimento por si só é a cura de todos os males do mundo

Era uma vez um escritor erudito e brilhante, dono de uma obra fascinante. Em um texto chamado "Fragmentos de um evangelho apócrifo" o tal escritor erudito e brilhante escreveu a seguinte pérola:

"Não odeies teu inimigo, porque se odeias a ele, de algum modo tu te tornas seu escravo. O teu ódio nunca será melhor que a tua paz."

[No original em espanhol: No odies a tu enemigo, porque si lo haces, eres de algún modo su esclavo. Tu odio nunca será mejor que tu paz.] O texto completo no original aqui.

Pois o mesmo famoso escritor erudito e brilhante jogou fora sua reputação, provavelmente jogou fora a chance de ganhar um Nobel, ao ir fazer um discurso de loas aos exércitos americanos e receber medalha das mãos de Pinochet no Chile em 1976. Um discurso onde, sem paz nenhuma e cheio de ódio, ele dizia simplesmente:


O facínora e o cego em 1976
"Há um fato com o qual devemos todos nos conformar, todos o continente e talvez todo o mundo. Nesta época de anarquia sei que há aqui, entre a cordilheira e o mar, uma pátria forte. Lugones predicou a pátria forte quando falou da hora da espada. Eu declaro preferir a espada, a clara espada, à furtiva dinamite. E digo isso sabendo, muito especificamente, o que digo. Pois bem, meu país está emergindo do pântano, creio, con felicidade. Creio que merecemos sair do pântano em que estivemos. Já estamos saindo, por obra das espadas, precisamente. E aqui já emergiram desse pântano. E aqui temos: Chile, essa região, essa pátria, que ao mesmo tempo uma longa pátria e uma honrosa espada." 

"Hay un hecho que debe conformarnos a todos, a todo el continente, y acaso a todo el mundo. En esta época de anarquía sé que hay aquí, entre la cordillera y el mar, una patria fuerte. Lugones predicó la patria fuerte cuando habló de la hora de la espada. Yo declaro preferir la espada, la clara espada, a la furtiva dinamita, Y lo digo sabiendo muy claramente, muy precisamente, lo que digo. Pues bien, mi país está emergiendo de la ciénaga, creo, con felicidad. Creo que mereceremos salir de la ciénaga en que estuvimos. Ya estamos saliendo, por obra de las espadas, precisamente. Y aquí ya han emergido de esa ciénaga. Y aquí tenemos: Chile, esa región, esa patria, que es a la vez una larga patria y una honrosa espada".

Um escritor erudito e brilhante pode ser um energúmeno político? Esse escritor, um gênio das letras, tinha se deixado levar por um ódio cego de classe média elitista que simplesmente não suportava que os "cabecitas negras" andassem elegendo gente que ele desprezava não apenas pela ignorância, mas também pela "falta de classe". 
Mas o energúmeno político não era um imbecil. O tal escritor erudito e brilhante reconheceu seu erro, recebeu as madres da praça de maio e esteve presente quando os membros das juntas militares que levantaram suas espadas e dizimaram mais de 30.000 pessoas no seu próprio país foram a julgamento. Mais ou menos 10 anos depois daquele discurso infeliz, o mesmo escritor, ainda erudito e brilhante, escreveu o seguinte:


O cego vê a luz e sai do julgamento em 1985
"Eu descri da democracia por muito tempo mas o povo argentino se encarregou de mostrar que eu estava equivocado. Em 1976, quando os militares deram o golpe de estado, eu pensei: afinal vamos ter um governo de cavalheiros. Mas eles mesmos me fizeram mudar de opinião ainda que custasse a receber notícias dos desaparecidos, os crimes e as atrocidades que cometeram. Um dia vieram à minha casa as Mães da Praça de Maio para me contar o que estava acontecendo. Não faz muito tempo estive no julgamento e conheci o promotor, ali me lembrei da frase de de Almafuerte: 'só peça justiça, mas melhor que não peças nada.' Tudo isso é muito triste e haveria que tratar de esquecer. O esquecimento também é uma forma de vingança. Foi um período diabólico e temos que tratar de fazê-lo pertencer ao passado. Entretanto, por tudo que acontece penso agora que há muita gente que sente nostalgia desse passado. Claro que para mim fica fácil dizer que devemos esquecer, provavelmente se tivesse filhos que tivessem sido sequestrados não pensaria assim."

[No original: Yo descreí de la democracia durante mucho tiempo pero el pueblo argentino se ha encargado de demostrarme que estaba equivocado. En 1976, cuando los militares dieron el golpe de Estado, yo pensé: al fin vamos a tener un Gobierno de caballeros. Pero ellos mismos me hicieron cambiar de opinión aunque tarde en tener noticias de los desaparecidos, los crímenes y las atrocidades que cometieron. Un día vinieron a mi casa las madres de Plaza de Mayo a contarme lo que pasaba. Hace poco estuve en el juicio y conocí al fiscal, allí recordé la frase de Almafuerte: “sólo pide justicia, pero será mejor que no pidas nada”. Todo esto es muy triste y habría que tratar de olvidarlo. El olvido también es una forma de venganza. Fue un periodo diabólico y hay que tratar de que pertenezca al pasado. Sin embargo, por todo lo que ocurre ahora pienso que hay mucha gente que siente nostalgia por ese pasado. Claro que a mi me resulta fácil decir que debemos olvidar, probablemente si tuviera hijos y hubieran sido secuestrados no pensaría así.] Você encontra o texto integral aqui

Não sejamos energúmenos: o caso não é simples. Não estou aqui pregando o valor da ignorância; estou apenas chamando a atenção para a peculiaridade de certas posturas políticas que são motivadas por um tipo específico de ignorância, alimentada por medos e ódios de classe que não são desmontados com uma leitura do Dom Quixote ou de Dom Casmurro. Luis Madureira me disse numa conversa que tivemos há pouco tempo uma coisa despretensiosa que não me sai mais da cabeça: toda a ação política deve ser pedagógica. Acho que ele tem mesmo muita razão. Toda a ação política deve ser exemplo, deve explicar as coisas, como as Mães da Praça de Maio e outras pessoas foram capazes de fazer o escritor tão brilhante e tão erudito sair finalmente da sua cegueira política. Noto como o depoimento dele em 1986 é marcado pela humildade e pela incerteza, num contraste marcante com aquele arrogante dono da verdade metido a besta que dizia que "a democracia é a superstição das estatísticas" e acreditava numa conceito tão ridículo como "um governo de cavalheiros". Num país em que mais da metade da população só se informa pela televisão e sei lá quantos milhares de pessoas lêem todas as semanas uma revista que mais parece um panfleto do Tea Party, não é difícil entender uma guinada à direita, ainda mais quando o governo faz mesmo um monte de lambanças.  Mas essa guinada não é irreversível, ainda mais que a direita no Brasil é a rainha das lambanças. Tomara que os professores espancados no Paraná e os professores massacrados no Brasil inteiro saibam fazer essa política pedagógica. Tomara.  

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