Skip to main content

Passado e presente, vida e arte no Grande Sertão: Veredas [em 4 partes]

           Seo Habão, de nome Abrão, era dono de terras na margem oeste do Rio São Francisco, a parte mais deprimida economicamente, reduzida à miséria completa pelo longo declínio das Minas e do norte de Minas Gerais, um longo e melancólico processo de decadência de mais de cem anos que só as novas minas [de ferro] e a siderurgia na segunda metade do século XX iriam mitigar. Ali vaga meio sem rumo, debilitado por doenças e exaustão, o bando de Riobaldo e Diadorim, liderado por um hesitante Zé Bebelo que tenta se aproveitar das novas guerras de jagunços para voltar a ser chefe de bando. Riobaldo se aproxima para conversar com Seo Habão e logo percebe as intenções do fazendeiro:
 
“Dei um jeito, fazendo como se menos quisesse, e vim em fala. Seô Habão me olhou com tanta norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as palavras primeiras, que tinha aprontado para declarar.
– ‘Seô Capitão Habão...’ – eu disse; e num relance eu conheci que estava também tendo de falar o p’r’ agradar.
Assim, o que dissertei foi que eu sabia do título de capitão que ele usufruía, por ter relido o diploma, na casa do Valado, que de roubos a furtos a gente do Sucruiú tinha devastado. E contei a ele que a referida patente eu tinha por cautela apanhado do chão e guardado dentro do oratório, por detrás das imagens dos santos.
Ele nem deu ar de interesse no fato, não me agradeceu por isso; perguntou nada. Disse:
- ‘A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que morreram: foram só dezoito pessoas...’
E o que indagou foi se eu soubesse se tinham feito muitos estragos nos canaviais. – ‘... O que eles deixaram em pé, e quelobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de dar uns carros, se move moagem...’ Agora ele conservava os olhos sem olhar, num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos. Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem calor nenhum, deu em mim, de repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em
canga, criaturas de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria meditável. – ‘Para o ano, se Deus quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...’ Ele repisava, que o que se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos – aí eu entendi a gana dele: que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os
companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele.”


[continua amanhã]

Comments

Popular posts from this blog

Diário do Império - Antenado com a minha casa [BH]

Acompanho a vida no Brasil antes de tudo pela internet, um "lugar" estranho em que a [para mim tenebrosa] classe m é dia brasileira reina soberana, quase absoluta, com seus complexos, suas mediocridades e sua agressividade... Um conhecido, daqueles que ao inv és de ter um blogue que a gente visita quando quer, prefere um papel mais ativo, mandando suas "id éias" para os outros por e-mail, me enviou o texto abaixo, que eu vou comentar o mais sucintamente possível: resolvi a partir de amanh ã fazer um esforço e tentar, al ém do blogue, onde expresso minhas "id éias" passivamente, tentar me comunicar diretamente com as pessoas por carta... OS ALUNOS DE UNIVERSIDADES PARTICULARES DERAM UMA RESPOSTA; E A BRIGA CONTINUOU ... 1 - PROVOCAÇÃO INICIAL Estudar na PUC:............... R$ 1.200,00 Estudar no PITÁGORAS:..........R$ 1.000,00 Estudar na NEWTON:.....R$ 900,00 Estudar na FUMEC:............ R$600,00 Estudar na UNI-BH:........... R$ 550,00 Estudar na

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia institucional católica não conseguem [ou não tentam] entender muito o sistema