Costuma-se dizer que o personagem Fabiano do romance Vidas Secas é um ser bruto, inarticulado. Pior ainda ele é às vezes rotulado como representante de uma suposta brutalidade inarticulada de todos os nordestinos. Como em todo romance de primeira, as coisas são bem mais complicadas do que isso em Vidas Secas. Vejamos este trecho em que Fabiano consegue "arranjar as idéias":
Cambão e canga e dois boizinhos |
“Agora Fabiano
conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. Vivia preso como
um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um
soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a
lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o
espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a
espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado
amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria
os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que
dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia que lhe
fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.
Fabiano
gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a
mulher que se queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço.
Deveria continuar a arrastá-los? Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas. Os
meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de
um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.”
Fabiano de Nelson Pereira dos Santos na delegacia |
Tudo se passa na cabeça de Fabiano; o que sai pela boca é apenas um grito que assusta os seus companheiros de prisão de delegacia. Entretanto, Fabiano reflete com agudeza sobre sua própria condição e sobre a condição do seu opressor mais direto [o soldade amarelo] como mero instrumento-propriedade de outros homens. A família [incluindo aí a cachorrinha Baleia], ao mesmo em que pesa-lhe as costas, o impede de fazer uma asneira. E no final a angústia de se ver preso num ciclo de miséria e exploração que vai além dele mesmo e promete repetir-se com seus filhos.
A realidade é dura no nordeste mas não é menos dura em outras partes do país. Que cada um vote em quem quiser pelos motivos que arrumar, mas gostaria muito que as pessoas no Brasil parassem de projetar seu sentimento de inferioridade em relação ao estrangeiro num sentimento de superioridade com relação a nordestinos e nortistas que é, fundamentalmente, besta, para usar uma palavra cara a Graciliano Ramos. Sem o nordeste o Brasil seria um país incomparavelmente mais cacete. E, como comprovam os engarrafamentos abissais e o cheiro de cocô dos rios que cruzam a cidade mais rica do país, nossos problemas não se reduzem simplesmente a falta de desenvolvimento econômico.
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