O New
York Times publicou um mapa “dos lugares mais difíceis para se morar” nos
Estados Unidos. O título do mapa já me chama a atenção pela engenhosa
inversão que desliza significados precisamente na abordagem ao tema tabu do
país [a classe social]: aparentemente você “tem a vida dura” não porque é pobre
mas porque vive num lugar em que as pessoas “têm a vida mais dura”. Basta mudar-se
para a cidade certa e está tudo resolvido!
Algo
ainda mais obscuro chama a atenção pela sua ausência nesse mapa. Um mapa assim,
aparentemente tão preciso pelo acúmulo estrondoso de dados específicos sobre
cada município [chamado county], pode ainda ocultar muito através
dessa infame figura retórica favorita da estatística: aquilo que chamamos de “média”.
O
condado [pelo menos em Connecticut] é uma instituição meio-fantasma do ponto de
vista administrativo, assim como as chamadas regiões metropolitanas no Brasil.
Cada município [o que é chamado aqui de city] tem seu prefeito, sua
própria administração e corpo de funcionários públicos, sua própria força
policial e suas próprias escolas primárias e secundárias financiadas
principalmente pelos impostos pagos pela propriedade [mais ou menos
correspondente ao nosso IPTU], além de fundos vindo do estado ou do governo
federal.
Pelo
mapa do New York Times não parece que as coisas estão tão mal assim aqui no
condado de New Haven. Os números do contado como um todo [população total:
862.287 em 2013] são os seguintes:
Renda média [Median Income]: 62,234
Taxa de desemprego: 9.2%
Abaixo da linha da pobreza: 12%
Mas
e se comparamos três cidades vizinhas
pertencentes ao mesmo condado [New Haven, East Haven e Woodbridge]? A distância
entre os centros de New Haven e Woodbridge é de 10 quilômetros percorridos de
carro em 18 minutos e a distância entre os centros de New Haven e East Haven é
de 7.5 quilômetros percorridos de carro em 13 minutos. Elas formam um tecido
urbano contínuo, entre elas não há área verde ou um cinturão rural. Entre a
última construção de New Haven e a primeira de East Haven ou Woodbridge
geralmente há não mais que uma cerca viva. Porém os dados abaixo nos mostram
como New Haven [a cidade], East Haven e Woodbridge são de fato muito
diferentes:
New Haven
|
East Haven
|
Woodbridge
|
|
Renda média
|
US$36.530
|
US$63.136
|
US$123.947
|
Desemprego
|
7.2%
|
9.7%
|
4.2%
|
Abaixo da
linha da pobreza
|
24.4%
|
7.8%
|
2.3%
|
Brancos
|
30,7%
|
82.6%
|
84.6%
|
Reportagem aqui |
Hoje
em dia os problemas mais notórios de discriminação racial acontecem em East
Haven, onde a polícia sofreu intervenção federal por comprovadamente perseguir
os latinos e depois tentar barrar qualquer punição significativa aos que praticaram
abusos. Por outro lado, um habitante de Woodbridge [que trabalha na
universidade que fica na cidade de New Haven] um dia me perguntou de maneira retórica
porque "essa gente toda" que vive desempregada ou sub-empregada não se
mudava da cidade de New Haven – um comentário que, tendo em vista o título do
mapa do New York Times, entende-se melhor,
mas que continuo achando absurdo. A cidade de New Haven era um centro
industrial importante quando o nordeste dos Estados Unidos era, junto com a
área entre Detroit e Chicago, o centro da indústria mais poderosa do planeta.
Desse passado restaram dúzias de
fábricas abandonadas pela cidade e uma população que tipicamente teve que
trocar um emprego sindicalizado numa fábrica por um subemprego pessimamente
remunerado numa lanchonete ou supermercado.
Fábrica da Winchester pelas lentes do blogue Snapshots for Sore Eyes |
O
ponto principal é que, frente a um sistema que segrega implacavelmente, fica
difícil por muita fé em generalizações medidas por médias estatísticas. Tanto
aqui como no Brasil. Aliás a prevalência da média como uma espécie de tropo
retórico invisível me incomoda bastante, por exemplo, na educação e na
medicina, onde a aplicação de médias parece acabar transformando a maioria das
crianças e dos pacientes em "anomalias".
Explicando
a grosso modo: Se em cem crianças 45 aprendem uma determinada habilidade aos
três anos de idade e outros 45 aos cinco, essas 90 crianças [em um grupo de
100] vão depois ser chamadas de "estranhas" ou "fora dos
padrões", já que a média seria quatro anos e idade.
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